Observamos como a vida vai sendo administrada. Às vezes, situações cotidianas, como a despedida de um ciclo – um curso que termina, um evento social – podem despertar sentimentos complexos. Surge a questão: por que sentiríamos ciúme? O que é esse ciúme?
O sentimento por trás do ciúme
Poderíamos pensar no ciúme como aquela sensação que surge ao imaginar que o outro possa encontrar em alguém algo que não encontra em nós. Isso pode gerar uma tristeza, uma dor, a sensação de não ser completamente amado ou suficiente. Essa é a base. A forma como lidamos com essa dor inicial é que pode levar a comportamentos problemáticos – possessividade, controle, agressividade. Mas a origem é esse sentimento de uma possível falta, de uma comparação implícita. Se uma pessoa é violenta, ela não é apenas ciumenta, ela é violenta; a violência é uma forma de lidar com aquele sentimento primário. Esse sentimento pode se intensificar se já existe uma insegurança prévia, como a dúvida sobre ser desejado pelo parceiro. Racionalmente, podemos entender as circunstâncias – uma despedida, um evento social – mas a razão nem sempre afasta o sentimento. A pergunta “por que ela se arrumaria mais para os outros do que para mim?” aponta para a raiz desse incômodo.

A dinâmica do incômodo e a projeção
É interessante notar como nos incomodamos não necessariamente com a pessoa em si, mas com a situação que ela representa naquele momento. O amor pode existir, mas a frustração com a dinâmica atual pode tomar a frente. E se o outro lado também se sentir assim? Se também precisar de validação, de ser visto, de sentir que importa?
Frequentemente, o que incomoda no outro é um reflexo de algo interno. A irritação com as “bobagens” ditas pelo parceiro, por exemplo. Por que isso incomoda tanto? Essa irritação pode ser uma oportunidade de autoconhecimento. Ao sentir o impulso de corrigir, de intervir, podemos nos perguntar: “Por que eu me incomodo com isso? O que isso diz sobre mim?”. Muitas vezes, a necessidade de controlar a fala ou o comportamento do outro mascara uma dificuldade em lidar com aspectos próprios.
Essa dinâmica pode se manifestar de formas sutis, como um jogo inconsciente de provocações, onde um “joga a isca” e o outro “morde”, repetindo um padrão. Um exemplo clínico interessante envolveu um cliente que reagia com extrema agressividade (quebrando objetos) às provocações da esposa. Descobriu-se, com o tempo, que ela inconscientemente buscava essa explosão, talvez como uma forma distorcida de obter atenção ou de lidar com suas próprias questões não resolvidas, possivelmente ligadas à sua história familiar. Quando ele aprendeu a controlar sua reação, a não “morder a isca”, a dinâmica mudou radicalmente. Ela chegou a estranhar a calma dele, confessando, de certa forma, que esperava a punição para sentir alívio depois. Quebrar esse padrão permitiu uma comunicação mais autêntica.
O ‘outro eu’ e a necessidade de aceitação
A dificuldade em aceitar as “bobagens” ou as imperfeições do outro pode estar ligada à repressão de partes de nós mesmos. Existe, metaforicamente, um “outro eu” dentro de nós – talvez mais livre, mais espontâneo, menos preocupado com as aparências, que às vezes consideramos “idiota” ou inadequado. Sufocamos essa parte, a trancamos no porão, por medo do julgamento ou por sentirmos que temos muitas obrigações, que precisamos ser sempre controlados e sérios.

Quando nos irritamos com a espontaneidade ou a “bobagem” do parceiro, estamos, na verdade, reagindo à lembrança desse nosso eu reprimido. A parceira se torna um gatilho que nos lembra daquela parte trancada, e a nossa reação é uma tentativa de reforçar as trancas. É um mecanismo projetivo: vemos no outro o que não aceitamos em nós.
Isso se reflete também em como os outros nos percebem. Alguém que ri muito, que é espontâneo, pode incomodar aqueles que se sentem presos à seriedade. O comentário “Mr. Smile” não é sobre a risada em si, mas sobre a liberdade que ela representa, que o outro talvez não se permita ter.
Um caminho para a mudança
A sugestão, então, não é simplesmente “ser legal” com o parceiro por obrigação. É entender que, ao nos importarmos menos com as “bobagens” do outro, ao permitirmos que ele seja quem é, estamos, na verdade, dando permissão a nós mesmos. Ao libertar o outro da nossa crítica e controle, libertamos aquela parte nossa que está no porão.

Isso exige um esforço consciente. No começo, o incômodo virá. Mas experimentar não reagir, ou até estimular a expressão livre do outro e acolhê-la com afeto genuíno, sem ironia ou sarcasmo, pode ser transformador. Quando você se liberta internamente, o mundo à sua volta muda. A relação com o trabalho, com a vida, tudo pode destravar. Trata-se de ser autêntico. As pessoas percebem e valorizam a autenticidade, mesmo que inconscientemente. É por isso que, às vezes, aquele “eu” do porão escapa e traz sucesso, porque é genuíno.
É um processo, são temas difíceis, mas insistir nesse caminho de auto-observação e aceitação mútua vale a pena. A confiança se constrói quando o outro sente que pode se revelar, mesmo em suas “bobagens” ou vulnerabilidades, sem medo de ser julgado ou ridicularizado. E essa segurança, por sua vez, permite uma conexão mais profunda e satisfatória.