Imagem fotorrealista de uma pessoa ajudando outra, com uma sobreposição sutil mostrando a ferida interna do ajudador.

O desejo de salvar: ajudar o outro ou curar a si mesmo?

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Na prática clínica, e na vida, frequentemente nos deparamos com o forte impulso de “ajudar” ou “salvar” aqueles que percebemos em sofrimento, especialmente nossos parceiros íntimos.

Esse desejo, embora muitas vezes genuíno, pode carregar motivações inconscientes complexas, ligadas às nossas próprias histórias e feridas não resolvidas. Questionar a natureza dessa “ajuda” é um passo fundamental no processo de autoconhecimento e na construção de relações mais autênticas.

Salvando o outro, salvando a si mesmo: motivações inconscientes na ajuda

Um cliente se vê intrigado com sua própria dinâmica ao tentar apoiar a esposa em momentos de depressão e frustração. Ele percebe que suas tentativas de oferecer soluções ou fazer perguntas investigativas, em vez de aliviar, parecem intensificar o sofrimento dela.

Ao refletir sobre sua história familiar – marcada pela depressão materna e pela figura de um pai percebido como impotente – ele levanta uma hipótese crucial: será que seu desejo de “salvar” a esposa não seria uma tentativa de salvar a si mesmo da dor e da impotência que sentiu na infância? Ou, numa dinâmica mais complexa, será que a depressão dela, de alguma forma, o atrai por ser um cenário familiar onde ele busca, inconscientemente, uma nova resolução para o antigo drama?

Essa dinâmica, onde o “salvador” projeta suas próprias necessidades e conflitos no “salvado”, é um exemplo clássico da compulsão à repetição descrita por Freud. Repetimos padrões relacionais na esperança de, desta vez, obter um resultado diferente, de dominar o trauma original.

Aquarela mostrando homem ajudando esposa, com projeção sutil de sua infância e trauma familiar representando a compulsão à repetição.
Salvar a esposa… ou salvar a si mesmo da dor infantil?

Reconhecer essa possibilidade não significa abandonar o desejo de ajudar, mas sim abordá-lo com mais consciência, diferenciando o apoio genuíno à necessidade do outro da satisfação de nossas próprias carências inconscientes.

A realidade que criamos: como a psique adapta o mundo para sofrer menos

Nossa percepção da realidade é subjetiva e maleável. A mente busca, por natureza, minimizar o sofrimento e a angústia, adaptando nossa interpretação dos fatos para criar uma “realidade psíquica” mais palatável.

Vemos isso na forma como um marido busca significados místicos ou “quânticos” em sombras para lidar com a dor da anulação de seu casamento, ou como construímos narrativas que justificam as escolhas difíceis dos outros (como a mãe que opta pelo “dever” de cuidar do neto em vez do “prazer” de visitar o filho) para evitar confrontar sentimentos de rejeição ou preferência.

Essa capacidade de adaptação é um mecanismo de defesa essencial, mas também pode nos manter presos em ilusões ou impedir o contato com verdades dolorosas, mas necessárias para o crescimento. A análise busca justamente explorar essas realidades construídas, questionando suas bases e flexibilizando narrativas rígidas, permitindo um contato mais autêntico com a experiência, mesmo que ela envolva dor.

Ouvir o indizível: a escuta analítica para além das palavras

Diante da complexidade das motivações inconscientes e das realidades psíquicas construídas, qual o papel da escuta terapêutica (e, por extensão, da escuta empática nos relacionamentos)?

Muitas vezes, a intervenção mais poderosa não está em oferecer soluções, conselhos ou interpretações diretas, mas em criar um espaço seguro para que o indizível possa emergir. É ouvir para além das palavras, prestando atenção às entrelinhas, às emoções subjacentes, aos padrões repetitivos.

No contexto de ajudar um parceiro em sofrimento, isso se traduz em resistir ao impulso de “consertar” e, em vez disso, oferecer uma presença atenta e validadora. Às vezes, o simples ato de ser ouvido sem julgamento permite que a pessoa organize seus próprios pensamentos e sentimentos, encontrando suas próprias saídas.

Cena cinematográfica: homem bonito ouvindo atentamente mulher linda, captando emoções não ditas representadas por elementos etéreos.
Ouvir para além das palavras.

Para quem ouve, é um exercício de humildade e contenção, reconhecendo que a verdadeira transformação vem de dentro do outro, e nosso papel é, muitas vezes, apenas o de testemunha e facilitador desse processo interno. Salvar o outro pode ser, em última instância, permitir que ele se salve, enquanto cuidamos de salvar a nós mesmos dos nossos próprios fantasmas.

Conclusão

O desejo de ajudar é nobre, mas nossas motivações nem sempre são transparentes para nós mesmos. Ao nos relacionarmos com o sofrimento do outro, somos confrontados com nossos próprios fantasmas, traumas e necessidades não resolvidas.

O autoconhecimento, a capacidade de questionar nossas intenções e a prática da escuta empática são ferramentas essenciais para transformar o impulso de “salvar” em um apoio genuíno, que respeita a autonomia do outro e promove o crescimento mútuo, sem repetir os dramas do passado.

Palavras-chave: psicoterapia, psicanálise, repetição, trauma, realidade psíquica, escuta analítica, autoconhecimento, relacionamento, depressão, inconsciente, salvador, projeção.

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