Quantas vezes nos sentimos presos a um roteiro invisível, especialmente em encontros familiares? Parece que velhos papéis e expectativas ressurgem, gerando um desconforto familiar. Talvez você se reconheça na sensação de precisar “ignorar” certas falas ou presenças para manter a paz, ou na tensão inicial ao encontrar aquele grupo de parentes cujas críticas parecem inevitáveis.
A boa notícia é que essa dinâmica não precisa ser uma sentença. Entender de onde vem esse incômodo e como a nossa própria percepção alimenta essas situações é o primeiro passo para encontrar uma liberdade genuína, mesmo em meio ao “teatro” das relações humanas.
Desmascarando o “Olhar Viciado” e o Papel Conveniente
Um dos maiores desafios nas relações é o “olhar viciado”, aquela forma pré-concebida e rígida com que vemos (e somos vistos) pelos outros. Pense no familiar rotulado como “o problemático”, talvez alguém lutando contra um vício.
Uma recaída momentânea pode apagar todo o esforço anterior aos olhos de quem já o condenou. Freud descreveria isso como parte dos mecanismos de defesa, onde projetamos nos outros aquilo que não queremos ver em nós mesmos. O mais curioso é como esses rótulos se tornam “convenientes” para a dinâmica do grupo.

Ter o “bêbado” ou a “desorganizada” para apontar desvia o foco das questões individuais de cada um. Uma cliente (Joana, vamos chamá-la) percebeu isso ao conversar com sua sogra: o julgamento constante impedia que a sogra reconhecesse qualquer progresso do marido que luta contra o alcoolismo. Quebrar esse ciclo exige reconhecer esses papéis e escolher oferecer um olhar de reconhecimento, mesmo diante dos “deslizes”, que, afinal, não definem ninguém.
A Liberdade Inesperada na “Subestimação”
Parece contraintuitivo, mas sentir-se subestimado pode conter uma semente de libertação. Joana, ao ouvir piadas recorrentes sobre sua falta de habilidade na cozinha, teve uma epifania: “Podem me subestimar, porque tudo que eu fizer daqui para frente será lucro!”.
Essa postura inverte o jogo: se a expectativa é baixa, não há pressão, e qualquer acerto vira um sucesso inesperado. Remete à história do homem que começou dormindo em papelão e construiu um império; talvez a ausência de expectativas alheias o tenha deixado livre para criar seu próprio caminho.
Contudo, existe uma armadilha: a tentação de se acomodar nesse lugar de “pouca expectativa” para colher elogios fáceis. Lembre-se da frase: “Contra críticas temos defesa, contra elogios somos vulneráveis”.
O elogio cria uma nova obrigação. A verdadeira liberdade não é ser subestimado, mas sim desvencilhar-se da necessidade de atender a qualquer expectativa, seja ela positiva ou negativa.
O Extraordinário Escondido no Cotidiano
Vivemos em busca do “extraordinário”, de grandes feitos e momentos espetaculares, uma fantasia que, como apontou Lacan ao falar do desejo como falta, talvez nunca se realize da forma como idealizamos.
E se o extraordinário não estiver lá fora, mas aqui, nos detalhes simples do dia a dia? A filha de Joana sentiu que viveu algo mágico simplesmente por tomar café da manhã na cama com os pais.

O valor não estava no evento em si, mas na qualidade da presença, no sentimento de conexão que ele despertou. O que buscamos repetir não é o ato, mas a sensação. Pense na história do pai analfabeto que deixava um nó no lençol da filha. Aquele nó era a prova diária de que ela existia para ele, que era notada. Esses momentos de “presença”, mesmo que breves (10 minutos de atenção plena aqui, um gesto de carinho ali) são o verdadeiro alimento da alma.
Pessoas menos presas às “obrigações” sociais talvez sejam mais livres para perceber e viver essa pureza.
Conclusão
Libertar-se das expectativas alheias e, principalmente, das nossas próprias expectativas internalizadas é um caminho contínuo de autoconsciência. Implica reconhecer os papéis que representamos, os julgamentos que fazemos e recebemos, e a beleza escondida na simplicidade. Quando paramos de nos sentir obrigados a ser quem achávamos que deveríamos ser, abrimos espaço para descobrir quem realmente somos e queremos ser.
É encontrar uma nova direção, mesmo que o percurso tenha altos e baixos, e começar a moldar nossos pensamentos e ações a partir desse lugar mais autêntico e leve. A liberdade não é ausência de desafios, mas a capacidade de navegar por eles com mais consciência e menos peso.
Palavras-chave: expectativas, autoconsciência, liberdade interior, relações familiares, autoimagem, julgamento, papéis sociais, simplicidade, presença, crescimento pessoal, vulnerabilidade.