Em nossa jornada pela vida, frequentemente nos confrontamos com situações e pessoas que provocam reações intensas, sejam elas positivas ou negativas. Emoções como desconforto, raiva, admiração ou alívio podem parecer surgir espontaneamente, mas a psicanálise nos ensina que são, na verdade, ecos profundos de nossas experiências e da maneira como construímos nossa percepção do mundo e de nós mesmos.
O olhar como filtro da realidade
Imagine a seguinte situação: um indivíduo se depara com uma postagem em redes sociais de alguém de seu antigo ambiente de trabalho, um local que agora lhe causa repulsa. A postagem, aparentemente simples, como o apoio da empresa durante a gravidez, desencadeia um mal-estar. Por que essa reação tão intensa? Porque aquele ambiente, antes parte de sua realidade, tornou-se, em sua percepção atual, algo “podre” e “mentiroso”. O incômodo não emana da postagem em si, mas da projeção de sua própria frustração e desilusão com o passado naquele conteúdo. É como se uma parte de si ainda estivesse presa àquela realidade que agora rejeita.

A funcionalidade do aparente obstáculo
Outro exemplo comum é a dificuldade em vender um bem, como um apartamento. A persistência dessa situação, apesar de gerar aflição e o desejo de encerrar logo esse capítulo para obter tranquilidade, pode, paradoxalmente, ser funcional. Mantém um senso de urgência, um impulso que impede a estagnação e direciona o indivíduo para novos negócios e planos. É a sincronicidade em ação, revelando que nem tudo ocorre por acaso e que há um tempo e um propósito para cada acontecimento. O que inicialmente parece um obstáculo pode, na verdade, impulsionar o crescimento. A frustração inicial pode, com o tempo, transformar-se em alívio, na compreensão de que, se algo não prosperou, talvez simplesmente “não era para ser”.
Projeções e identificações nos relacionamentos
As projeções e identificações também desempenham um papel crucial em nossos relacionamentos mais íntimos. Quando alguém se sente incomodado ou experimenta ciúmes em relação ao comportamento do parceiro(a), essa reação frequentemente não está ligada à ação do outro em si, mas sim à evocação de dores e culpas internas. A raiva sentida é, na verdade, uma raiva própria, transferida para o outro. Julgamos o outro como “traidor” ou usamos termos pejorativos porque, em algum nível, carregamos essa autodefinição proveniente de experiências passadas.
O caminho para a transformação
Como podemos abordar essa questão e aliviar esse fardo? O caminho não é fácil, mas envolve, essencialmente, “olhar” o outro de uma perspectiva diferente. Buscar enxergar além da primeira impressão, além da imagem que nossa própria culpa projeta. Ao observar o outro e perceber que ele não se encaixa nos rótulos negativos que lhe atribuímos, que existe complexidade e, frequentemente, arrependimento ou boas intenções por trás das ações, começamos a “digerir” nossa própria culpa. É um processo de desapego da persona que criamos para ocultar o que julgamos ser em nós mesmos. Nesse sentido, a relação com o outro se torna um espelho e uma ferramenta de libertação. Ao ver no outro que ele não é “inadequado” da forma como nosso olhar internalizado sugere, passamos a nos entender melhor e a nos libertar da necessidade de representar um papel para esconder algo. O desejo que sentimos no outro pode, na verdade, ser um desejo nosso. Entender isso e, se for o caso, conversar sobre isso, fortalece a confiança.

Nossas origens e o meio em que crescemos, embora influenciem, não são o destino final. O que realmente determina nossa realidade psíquica é o “olhar” que absorvemos e internalizamos, especialmente o olhar dos cuidadores primários. Um olhar de abandono ou despreocupação internalizado na infância pode criar uma realidade de desamparo, mesmo que objetivamente não tenha sido essa a intenção dos pais. A criança, sem ter a consciência e a maturidade para processar, constrói teorias para dar sentido a essa realidade. A boa notícia é que essa realidade psíquica não é imutável. Ao longo da vida, e especialmente em processos de autoconhecimento, podemos começar a questionar e “digerir” essas construções internas. Olhar para as pessoas e situações que nos causam incômodo, ciúme ou dor, e tentar compreendê-las de uma nova perspectiva, é como tomar um “chá de boldo” – pode ser amargo, mas faz bem e, com o tempo, se torna mais suportável. É um trabalho contínuo de reinterpretação, onde o outro nos ajuda a ver aquilo que em nós mesmos é difícil de encarar. Ao entender que as reações intensas (o embrulho no estômago, o ciúme) têm a mesma raiz – nosso jeito particular de pensar e sentir a partir de nossas referências internas – ganhamos a possibilidade de transformação. É um convite a olhar para dentro, usando o mundo externo como um espelho que revela aspectos de nós mesmos que precisam ser vistos, compreendidos e, eventualmente, curados.
Palavras-chave: Psicanálise, projeção, relacionamentos, autoconhecimento, percepção, cura emocional, desenvolvimento pessoal, bem-estar.